25 de abril de 2024Informação, independência e credibilidade
Brasil

Caso Marisa Letícia: Médicos tripudiam a ética e são demitidos

O comportamento antiético de médicos sobre paciente gerou punições

Na última semana, todos foram surpreendidos pela atitude de médicos que comentaram, em grupos de WhatsApp, o estado de saúde da ex-primeira dama Marisa Letícia após ela dar entrada no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, ao sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) de nível 4 na escala Fisher, um dos mais graves.

O estado de saúde da esposa do ex-presidente Lula foi se agravando e, na sexta-feira (3), após 11 dias de internação, o hospital declarou a morte de Marisa. Além do quadro clínico da ex-primeira dama, outra coisa chamou a atenção. Gabriela Munhoz, médica reumatologista que fazia parte do quadro de profissionais de um dos hospitais mais consagrados do Brasil, não hesitou e encaminhou dados sigilosos sobre o estado de saúde da paciente para um grupo de médicos.

A partir daí, comentários agressivos foram feitos sobre os procedimentos realizados para tentar reverter o quadro clínico, considerado crítico, de Marisa. De acordo com matéria publicada pelo jornal O Globo, a profissional conta aos membros do grupo “MED IX” que Marisa Letícia seria internada na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do hospital mesmo sem ter tido acesso ao prontuário da ex-primeira dama. As mensagens se espalharam rapidamente.

No mesmo dia, outro médico ironizou o quadro clínico da esposa do ex-presidente Lula. O neurocirurgião identificado como Richam Faissal Ellakkis comentou os procedimentos médicos realizados em Marisa Letícia de forma hostil: “Esses fdp vão embolizar ainda por cima. Tem que romper no procedimento. Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”, disse em referência ao método utilizado para fechar o vaso sanguíneo e diminuir o fluxo de sangue no local afetado pelo AVC.

Ellakkis não fazia parte do corpo de profissionais do Sírio-Libanês. Depois da divulgação do teor das mensagens, os dois médicos foram afastados do exercício da função. Gabriela Munhoz foi demitida do Hospital Sírio-Libanês e Ellakkis teve contrato rescindido com a Unimed.

O Sírio-Libanês pediu desculpas públicas à família da ex-primeira dama e destacou, em nota sobre a demissão de Gabriela, que tem “uma política rígida relacionada à privacidade de pacientes” e demonstrou “repúdio” à atitude da profissional. A Unimed explicou que Ellakkis era “terceirizado do hospital próprio da cooperativa, por meio de contrato de prestação de serviços” e também repudiou as declarações feitas pelos médicos citados.

O presidente do Sindicato dos Médicos do Distrito Federal (SindMédicos-DF), Gutemberg Fialho, declarou que esse tipo de comentário não deve ser feito nem em tom de brincadeira”. O médico ginecologista concordou com o afastamento dos profissionais autores das mensagens: “Tem que tomar uma posição até para que essas coisas não sejam reincidentes”.

“É uma situação lamentável que informações de pacientes venham a público dessa forma. É evidente que os comentários que foram feitos em tom ‘jocoso’. Mas, apesar de não haver intensão de concretizar isso ou aquilo [em relação aos dizeres de Ellakkis], foram feitos em um momento de dor da família. Também mostra que, hoje em dia, em plena era digital, esse tipo de comentário, mesmo em tom de brincadeira, não deve ser feito porque aumenta mais ainda o sofrimento dos envolvidos e dos próprios colegas, que ficam constrangidos e envergonhados quando um episódio como esse vem a público”, ressaltou.

Velório de Marisa Letícia

“Fica a lição. Machuca as pessoas envolvidas e constrange as pessoas que fazem parte da categoria profissional. O comentário foi feito, em tese, em uma rede privada. Mas, hoje em dia não existe mais nada privado. Temos que ter cuidado porque um comentário, em tom de brincadeira, que parece ser inocente, quando se torna público, fere”, acrescentou o presidente do SindMédicos-DF.

Juramento – O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) instaurou sindicância para apurar o vazamento dos dados considerados sigilosos. ”O exercício da medicina deve respeitar e preservar todos os aspectos do doente: físico, emocional e moral, transcendendo tabus, crenças e preconceitos, em nome da fidelidade ao compromisso de tratar e cuidar de todos, sem qualquer distinção”, ressaltou a direção do Cremesp em nota divulgada à imprensa.

Ainda de acordo com o conselho regional, ”sob o juramento hipocrático e os princípios fundamentais da Medicina, todo médico deverá ‘guardar absoluto respeito pelo ser humano e atuar sempre em seu benefício” e que o médico jamais poderá utilizar seus conhecimentos “para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”.

Em artigo publicado neste domingo (5) na Folha de S. Paulo – intitulado “Afronta à dignidade humana” -, o cardiologista Roberto Kalil Filho, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor de cardiologia do Sírio-Libanês alertou que, apesar das dificuldades enfrentadas diariamente pelos profissionais da saúde, principalmente os que compõem o quadro da rede pública, “quando afrontam a ética, quebram o juramento de Hipócrates proclamado ao receberem o título de doutor”.

“O caso revela um dos lados perversos do comportamento humano, reprovável e absolutamente inadmissível para quem se apresenta como médico. Pior ainda é testemunhar esses profissionais serem movidos por sentimentos menores e ideologias político-partidárias, fazendo apologia à morte, como lamentavelmente observamos na última semana”, criticou.