19 de abril de 2024Informação, independência e credibilidade
Blog da Graça Carvalho

Moradia digna: quais os instrumentos para sua efetivação?

Temáica oi abordada no 1º Congresso Internacional de Direito Público dos Direitos Humanos e Políticas de Igualdade

Plínio Almeida e Janaína Freitas, durante a apresentação no Congresso de Direitos Humanos.

Ainda repercutindo as discussões do 1º Congresso Internacional de Direito Público dos Direitos Humanos e Políticas de Igualdade, encerrado ontem, em Maceió, até pela diversidade de  temas relacionados à dignidade da pessoa humana, o Blog compartilha o trabalho apresentado pelos advogados  e professores  Plínio Almeida e Janaína Freitas a cerca dos  instrumentos de efetivação à moradia digna e inclusiva diante do panorama deficitário brasileiro.

Bastante interessante essa temática, sobretudo quando ocorrem episódios em que pessoas são obrigadas a deixar o local onde vivem há décadas. O que não falta é exemplo. Em Maceió, em 2015, depois de quase dez anos de uma intensa batalha judicial,  famílias que ocupavam, há mais de 50 anos, a chamada Vila dos Pescadores, no Jaraguá, tiveram que sair do local, numa desocupação traumática, para construção de um Centro Pesqueiro.

No caso do trabalho apresentado no Congresso, os exemplos citados foram as remoções de comunidades ocorridas no Rio de Janeiro, por ocasião da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. “Quando o assunto é remoção, o respeito aos valores culturais das comunidades é indispensável. Não foi o que muitas vezes se viu quando das obras para a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e para as Olimpíadas de 2016, em que foram registrados desrespeitos ao direito à moradia de diversas pessoas”, destacam os autores. A seguir, a íntegra do trabalho apresentado no Congresso.

 

OS INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO À MORADIA DIGNA E INCLUSIVA DIANTE DO PANORAMA DEFICITÁRIO BRASILEIRO

 Janaina Helena de Freitas[1]

Plínio Régis Baima de Almeida[2]

Resumo: O Brasil é deficitário quanto à efetivação do direito fundamental à moradia digna e adequada. Apesar de formalmente reconhecido na Constituição brasileira como direito fundamental social e previsto em tratados internacionais em que o Brasil é signatário, da realidade concreta deduz-se que o país ainda está longe de atender às necessidades de moradia do seu povo.  Incumbe ao estado um dúplice papel quanto aos direitos fundamentais: o de efetivá-los e também o de não os violar, exercendo os direitos fundamentais nesse contexto tanto o papel de fim a ser perseguido pelo estado quando o de limite à sua atuação. O presente artigo pretende, a partir de dados e da contextualização da moradia em casos relacionados a megaeventos, não apenas denunciar a realidade da moradia no Brasil, mas também propor uma reflexão acerca de instrumentos capazes de auxiliar numa mudança positiva desse cenário. Utilizou-se, para esses fins, de pesquisa bibliográfica de obras nacionais e estrangeiras e da análise legislativa e de dados sobre o tema.

Palavras-chave: Moradia. Direito Fundamental. Participação.

 

Resumen: Brasil es deficitario en cuanto a la efectividad del derecho fundamental a la vivienda digna y adecuada. A pesar de formalmente reconocido en la Constitución brasileña como derecho fundamental social y previsto en tratados internacionales en que Brasil es signatario, de la realidad concreta se deduce que el país todavía está lejos de atender a las necesidades de vivienda de su pueblo. Incumbe al estado un doble papel en cuanto a los derechos fundamentales: el de efectuarlos y también el de no violarlos, ejerciendo los derechos fundamentales en ese contexto tanto el papel de fin a ser perseguido por el estado cuando el de límite a su actuación. El presente artículo pretende, a partir de datos y de la contextualización de la vivienda en casos relacionados a megaeventos, no sólo denunciar la realidad de la vivienda en Brasil, sino también proponer una reflexión acerca de instrumentos capaces de auxiliar en un cambio positivo de ese escenario. Se utilizó, para esos fines, de investigación bibliográfica de obras nacionales y extranjeras y del análisis legislativo y de datos sobre el tema.

Palabras clave: Vivienda. Derecho Fundamental. Participación.

Palavras-chave: Palavra 1. Palavra 2. Palavra 3…

 

 

Introdução

 

A Constituição de 1988 – CF/88 elencou o direito à propriedade no rol de direitos fundamentais, mas o condicionou ao cumprimento da sua função social.  Além disso, o constituinte incluiu o direito à moradia no rol dos direitos sociais fundamentais, demonstrando importância e relevo do tema. Apesar disso, o Brasil continua sendo um país de desigualdades, deficitário quanto à efetivação de direitos fundamentais, a exemplo do direito à moradia.

Tal fato ganha relevo quando se trata de indivíduos em situação de vulnerabilidade social em contexto periférico. Os indivíduos hipossuficientes possuem mais obstáculos para a efetivação e salvaguarda de seus direitos fundamentais, e isso ocorre por diversos fatores, do que é exemplo a ausência de informação, a carência de meios financeiros ou mesmo, e o que nos parece ainda mais grave, por não se sentirem parte integrante da sociedade, sujeitos de direitos e deveres.

Ao Estado incumbe dúplice papel no que tange aos direitos fundamentais: se de um lado possui a tarefa de efetivá-los, do outro não pode violá-los, servindo os direitos fundamentais, portanto, como fim e também limite à atuação do Estado. Para contextualizar o problema, usaremos neste artigo dois Megaeventos ocorridos recentemente no Brasil – Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas no Rio de Janeiro de 2016 –, a fim de ilustrar como o Estado descumpriu sua dúplice tarefa no que tange ao direito à moradia. O critério utilizado para escolhermos os Megaeventos se deu em virtude da projeção e da visibilidade que os eventos trouxeram para o Brasil, tanto no plano interno quanto internacional. As violações aos direitos humanos foram retratadas em produções denominadas de Dossiê de violações a direitos humanos, fruto do trabalho de investigação de diversos setores da sociedade civil.

O recorte escolhido, dada a amplitude do tema, foi o direito fundamental à moradia digna e inclusiva, contrapondo os dados oficiais apresentados pela Fundação João Pinheiro com os instrumentos jurídicos nacionais e internacionais sobre o tema. Para isso, utilizou-se de pesquisa bibliográfica, nacional e estrangeira, além de análise legislativa, a exemplo da CF/88 e do Pacto Internacional dos Direitos Sociais e Culturais, bem como os Comentários das Organizações das Nações Unidas.

O artigo será dividido em quatro tópicos. De início será abordado o direito fundamental à moradia, o direito de propriedade e sua função social dentro da CF/88 e também em instrumentos internacionais. Em seguida, serão apresentados o panorama deficitário brasileiro e os dados da Fundação João Pinheiro sobre o tema. Posteriormente, trataremos do princípio da dignidade da pessoa humana e da emancipação social, trazendo também discussões sobre o debate da redistribuição e o reconhecimento, especialmente em Nancy Fraser. Por fim, serão apresentados e contextualizados instrumentos para a alteração do panorama deficitário brasileiro.

 

  1. O direito fundamental à moradia adequada, digna e inclusiva: aspectos conceituais e jurídicos

 

A CF/88 trata do direito à propriedade privada em diversos dos seus dispositivos. O constituinte o incluiu no rol dos direitos fundamentais, condicionando-o, não obstante, ao cumprimento de sua função social. Assim, a propriedade é um direito que, tal como os demais direitos fundamentais, não tem o caráter absoluto, estabelecendo o texto constitucional um termo condicionante ao seu gozo, o que nos faz já de inicio afirmar que o direito de propriedade perde a qualidade de fundamental caso o proprietário não cumpra com sua função social.

Para Comparato (1999, p. 382-383), essa função social da propriedade materializa-se em um poder-dever do proprietário, sancionável pelo ordenamento jurídico em caso de descumprimento. Ao analisar o conceito de função social da propriedade, Alfonsín (2013, p. 52-53) trouxe aspectos que devem ser observados pelo intérprete. Ele examina a extensão jurídica do direito de propriedade e reafirma que o dever de respeito à sua função social encontra-se no fato de este direito não ser exercido exclusivamente sobre coisas, mas também sobre pessoas ‒ os indivíduos não proprietários. No mais, aborda a necessidade de se observar se as necessidades alheias ao proprietário, em especial o direito à moradia, estão sendo inviabilizadas em razão do descumprimento da função social da propriedade.

O direito à moradia, que para Alfonsín é parâmetro essencial para se observar o cumprimento ou não da função social da propriedade, foi contemplado pela CRFB/88 como direito social e é também previsto em instrumentos internacionais; indispensáveis ao reconhecimento e ao alcance do seu conteúdo jurídico.

Assim como ao conceito de propriedade está vinculado à função social da propriedade, a ponto de afirmarmos que “função social” é parte integrante do próprio conceito de propriedade, a moradia, enquanto direito fundamental, deve ser digna e adequada. Dada a sua importância, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC[3]  oportunizou a incorporação dos princípios contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, outorgando ao direito à moradia o caráter de obrigatoriedade (MONTEIRO, 2014, p. 194).

Outro instrumento internacional sobre o tema, o Comentário Geral Nº 4 das Organizações Unidas, trouxe linhas conceituais sobre o que seria a moradia adequada, introduzindo importantes balizamentos para o tema, o que serve tanto para se contrapor às políticas habitacionais brasileiras, quanto para se questionar eventuais decisões judiciais que sejam emitidas em relação ao tema.

O Comentário Nº4 da ONU é importante por expandir a ideia tradicional de moradia, fornecendo parâmetros para deduzir uma moradia adequada. A insegurança de um morador em relação à sua posse, v.g., faz com que a moradia não seja considerada adequada, uma vez que nesse “estado de coisas” a dúvida sobre sua permanência no local é recorrente. O déficit de direitos fundamentais básicos, tais como serviços de água e de energia e saneamento básico, é também indicador de uma moradia não digna e não adequada.

A questão da adequação cultural, ignorada quando da formulação de políticas públicas habitacionais no Brasil, também deve ser observada. A falta de diálogo com as comunidades atingidas agrava o problema da moradia, não se levando em consideração as necessidades reais dos indivíduos envolvidos. Ao não se ouvir o destinatário da política, será realizado o que “se acha que deve ser feito” e não o que de fato “precisa ser feito”, sob o olhar da perspectiva do destinatário da política pública habitacional.

Quando o assunto é remoção, o respeito aos valores culturais das comunidades é indispensável. Não foi o que muitas vezes se viu quando das obras para a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e para as Olimpíadas de 2016, em que foram registrados desrespeitos ao direito à moradia de diversas pessoas.

Na cidade do Rio de Janeiro, bairro de Madureira, rua Domingo Lopes, cem famílias foram retiradas de suas residências sem sequer lhes assegurar alternativas de habitação em outro local ou mesmo pagamento de indenização. Já em Arroio Pavuna – Jacarepaguá, removeram uma comunidade que se encontrava há cinquenta anos no local, sob a justificativa de que ali seria construído um equipamento esportivo para os jogos Pan-Americanos e a abertura de acessos laterais para o condomínio Rio 2. Um dossiê realizado por movimentos sociais constatou, todavia, que no lugar existe apenas um grande gramado e que as obras de abertura laterais não foram iniciadas (Dossiê de Megaeventos, p. 22-23).

Seja ao remover os moradores, seja para escolher o direcionamento das políticas públicas, deve o Estado observar o rol jurídico que ele mesmo criou, bem como os tratados internacionais de que é signatário e os Comentários da ONU.

O solo urbano, conforme lembrou Ferreira (2010, p. 193), tem o valor mensurado por sua localização, somado com a infraestrutura ao seu redor. Atendendo ao mercado imobiliário e a outros setores da economia, o Estado muitas vezes intervém para valorização econômica de determinadas áreas, permitindo a esses setores a internalização do lucro, enquanto o custo é sociabilizado.

 

  1. O panorama deficitário brasileiro: uma contextualização necessária

 

O direito à moradia, além de ter ligação direta com os direitos humanos, possui um caráter de fundamentalidade[4], porquanto foi considerado pela CRFB/88 um direito fundamental do indivíduo, a merecer, portanto, especial atenção por parte do Estado, funcionando para este como “limite e tarefa”[5].

Por ser um “limite e tarefa”, não pode o Estado atuar de forma a transpor negativamente a barreira da dignidade, comprometendo a própria condição do indivíduo (limite), e deve ainda o Estado propiciar os meios necessários para a moradia digna (tarefa).

Inserto nesta perspectiva, tem-se o Brasil como signatário do PIDESC, importante instrumento internacional de proteção a direitos econômicos, sociais e culturais, que contemplou o direito à moradia em seu catálogo de direitos fundamentais, comprometendo-se a desenvolver políticas públicas para a efetivação desses direitos.

Ao Estado não basta aderir a tratados internacionais e prever em suas legislações o compromisso com o direito em si. A previsão do direito fundamental à moradia é apenas o ponto de partida formal, devendo ser enxergado como um start para as políticas públicas, a serem direcionadas para conformar o direito à moradia.

Estudo feito pela Fundação João Pinheiro[6] constatou que, no ano de 2013, São Paulo (1,254 milhão), Minas Gerais (494 mil), Bahia (417 mil) e Rio de Janeiro (399 mil) estão entre as unidades da federação com maior déficit habitacional. Também se verificou um ônus excessivo com o pagamento de aluguel, correspondendo a 2.553 milhões de unidades, destacando-se também a coabitação com 1,905 milhão e a habitação precária com 997 mil domicílios[7].

Detectou-se com o estudo um número elevado de domicílios rústicos e improvisados. Constatou-se ainda a carência de infraestrutura em energia elétrica, água, esgotamento sanitário e ausência de banheiro exclusivo. Além disso, a falta de regularização fundiária prejudica qualquer tentativa particular de financiamento para melhoria do imóvel (Fundação João Pinheiro, p. 22-24).

O estudo em apreço também atestou que considerável parcela da população convive com outro núcleo familiar ou reside em “cômodos” (coabitação). O déficit habitacional atinge principalmente as famílias de baixa renda, sobretudo na faixa de até três salários mínimos, correspondendo a 83,4% no ano de 2013 (Fundação João Pinheiro, p. 22-24).

Estatísticas relacionadas à moradia digna tendem a variar de acordo com os critérios utilizados para se identificar os problemas sociais decorrentes da violação desse direito. Os números apresentados revelam, de toda forma, omissão estatal na efetivação do direito à moradia adequada e digna (ALFONSIN, 2013, p. 199).

 

  1. Dignidade da Pessoa Humana e emancipação social: inclusão e redistribuição como pontos de partida

 

O princípio da dignidade da pessoa humana, de alta densidade e abstração, requer do intérprete esforço para evitar distanciamento com a realidade social, sendo imprescindível para isso a leitura do contexto no qual se insere o objeto de análise. Sarlet (2005, p. 14-15) afirma, nesse sentido, que mesmo que as circunstâncias de ordem pessoal e social sejam marcadas por divergências, o debate é a melhor forma de uma sociedade democrática estabelecer as balizas para a compreensão das diversas dimensões da dignidade da pessoa humana.

Sarlet apresenta a dignidade como limite e tarefa, apontando-a uma dupla dimensão – negativa e prestacional – que é direcionada tanto para o Poder Público quanto para a sociedade. A definição da moldura que possui a dignidade não é uma tarefa simples e sempre despertará questionamentos por parte do intérprete (WEYNE, 2013, p. 26).

A proteção à dignidade da pessoa humana tem um importante relevo quando se analisam os direitos sociais em um país com forte déficit de efetivação de direitos como é o caso do Brasil. Por outro lado, a nossa Constituição trouxe um vasto catálogo de direitos fundamentais, entre eles o direito à moradia, que, como já visto, deve ser digna e adequada.

Partindo-se do pressuposto de que previsões formais são pontos de partida, incapaz, por si, de alterar o status quo que atualmente se apresenta em nossa sociedade ‒ desigual e marcada por consideráveis contradições ‒, questiona-se: é possível alterar este panorama? Quais os instrumentos necessários para se operacionalizar a mudança?

As mudanças necessárias passam necessariamente pela emancipação social; emancipar é empoderar. Sobre o empoderamento, Foley lembra que o termo é apontado na sociologia como algo positivo, associado à “autonomia, desenvolvimento humano, justiça social, (…) e comportamento altruísta. É visto como um processo de transformação pessoal pelo qual as pessoas ganham controle sobre suas vidas e criam alternativas à relação de dominação e dependência” (FOLEY, 2010, p. 104).

A emancipação social não pode ser, como bem ressalta Boaventura (SANTOS, 2005, p. 23-24), mais um instrumento de dominação e exclusão, ou seja, não se trata de “ajustar” o indivíduo que está em contexto periférico ao modo das classes financeiramente mais beneficiadas. Deve-se considerar diversos fatores, inclusive os culturais e sociais do ambiente periférico, e assim incluir os indivíduos para que possam opinar sobre os rumos de suas vidas. O diálogo se mostra indispensável.

O debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth sobre a questão da redistribuição e do reconhecimento traz à tona a polarização entre as pessoas que enxergam a redistribuição como a solução aos problemas e injustiças que permeiam a sociedade e como isso ocorre nos tempos atuais (Fraser, 2006, p. 1).

Enquanto as lutas por redistribuição repousam na igualdade material de direitos e recursos, as lutas por reconhecimento lidam com questões étnicas, raciais e de gênero, por exemplo. O que Fraser ressalta é que muitos entendem que a luta pelo reconhecimento de direitos estaria substituindo a luta por justiça social. Essa polarização em nada contribui para a efetivação dos direitos, tanto os de cunho social como os ligados a questões culturais ou pessoais – gênero, raça ou etnias.

Assim, concordamos com Fraser (2008, p. 168-170) quando diz que a redistribuição e o reconhecimento, isoladamente, não são suficientes. É preciso que sejam desenvolvidos conjuntamente, sem que haja concorrência entre eles. A polarização entre redistribuição e reconhecimento apenas contribui para que nada se altere e o panorama continue desigual e contraditório.

A busca pela redistribuição de direitos deve ser enxergada como um ponto de partida e nunca de chegada, pois com a junção dos direitos perseguidos pela redistribuição e o reconhecimento – aqui inseridos os direitos culturais ‒, é que os indivíduos, especialmente os que estão em contexto periférico, atingirão, de fato, uma existência digna.

 

  1. Os instrumentos para a efetivação do direito à moradia digna e inclusiva: uma forma de aproximação entre o Estado e a realidade

 

Introduzidos os instrumentos legais – nacionais e internacionais – acerca do tema direito à moradia, bem como apresentado o panorama deficitário de efetivação de direitos por que passa o país, chegamos ao último ponto deste trabalho: identificar os instrumentos existentes que, ao lado do empoderamento e da emancipação social, podem contribuir para a alteração do complicado panorama que o país atravessa.

Sabe-se que no Brasil a ideia de cidadania é relacionada à possibilidade de um indivíduo votar, ou seja, possuir título de eleitor. Por outro lado, sabe-se que a cidadania é expressão da democracia, prevista formalmente no art. 1o da CF/88.

A democracia do Estado brasileiro é forjada sob alguns fundamentos, entre eles a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Dessa forma, a democracia, somada à cidadania (não apenas a formal) e à dignidade da pessoa humana devem ser guias a contribuírem para que o panorama, anteriormente apresentado, possa se alterar.

Assim como a cidadania, a democracia precisa ser real; para tanto, há de se ultrapassar as barreiras da representatividade em direção de uma democracia participativa, na qual o indivíduo participe ativamente das decisões políticas e sociais de sua comunidade.

Apenas prever mecanismos como o plebiscito, o referendo e a ação popular não resolve. Já as audiências públicas, apesar de descentralizar a discussão, só produzem resultado se houver divulgação e conscientização dos indivíduos sobre sua importância; além disso, é necessário que haja uma real intenção do Estado de ser influenciado pelas discussões que lá ocorrerem. Sem isso, serão apenas reuniões formais com aparência de democrática e participativa.

Boaventura leciona nesse sentido, discorrendo sobre a ideia da coexistência e complementaridade entre a democracia deliberativa e a participativa e explicitando os benefícios do monitoramento dos governos pelos indivíduos, o que resultaria de uma maior participação popular. “A concepção de complementaridade é diferente da de coexistência, porque (…) ela implica uma decisão da sociedade política de ampliar a participação em nível local através da transferência ou devolução para formas participativas de deliberação” (AVRITZER; SANTOS, 2005, p. 76).

Outro instrumento que vem a contribuir para a questão são os mapeamentos participativos, conceituados como “representações gráficas de dados e atributos selecionados, que seguem padrões e convenções científicas, técnicas e artísticas” (SYDENSTRICKER NETO, 2008, p. 73). Os mapeamentos permitem catalogar locais e necessidades, a fim de subsidiar futuras intervenções nos lugares mapeados. O termo “participativo” indica que a técnica e os técnicos não agem sozinhos, pois podem vir a ser auxiliados por indivíduos que residem no local.

Nos mapeamentos participativos, a elaboração do mapa, que inclui, v.g., fases como a coleta de dados e a forma de apresentá-los, pressupõe a participação ativa dos indivíduos. “Em geral, tais indivíduos se complementam e se diferenciam em termos de inserção profissional, representação comunitária e capacidades técnicas e artísticas (SYDENSTRICKER NETO, 2008, p. 73-74).

Os novos dilemas da sociedade e os problemas relacionados à moradia trouxeram a necessidade da elaboração de novos instrumentos. Os mapeamentos surgiram para auxiliar no processo de tomada de decisão, possibilitando a aproximação dos destinatários da política habitacional ao processo de definição e escolhas. Os saberes locais proporcionam a inserção de novas “lupas” no processo, o que permite um olhar diferenciado sobre problemas locais e afasta a ideia de “fazer para”, substituindo-a por “fazer com”.

O orçamento participativo é igualmente um instrumento que pode contribuir para a alteração do panorama deficitário de moradia. São mecanismos de participação popular que ocorrem dentro da estrutura do Estado, para debate de políticas públicas, nos quais a população possui voz e pode decidir as prioridades do investimento estatal[8].

Os orçamentos participativos constituem importante mecanismo de cidadania e democracia participativa. Todavia, aqui também mencionamos as mesmas preocupações trazidas anteriormente neste trabalho: a inclusão das pessoas no processo de decisão deve ser real, e não apenas formal.

A participação popular é essencial para a alteração do quadro apresentado e vem sendo efetivada também por outros instrumentos, como emendas populares, conselhos municipais e participação na formulação dos planos diretores junto ao Poder Executivo municipal. “Pode-se dizer que esses novos instrumentos legais expressam, no que se refere à política urbana, o reconhecimento formal das necessidades e direitos da população pobre das áreas urbanas, por parte de determinados setores da esfera pública (LAGO, 1991, p. 165).

Os mecanismos aqui apresentados, em conjunto com o fortalecimento da democracia participativa e da emancipação social dos indivíduos, são alternativas viáveis para a mudança do status quo de desigualdade social e de déficit de efetivação de direitos fundamentais, com destaque para os problemas relacionados à moradia.

 

Conclusão

A análise dos dados apresentados pela Fundação João Pinheiro ressalta bem o panorama deficitário no que tange à efetivação do direito social fundamental da moradia no Brasil, atingindo sobremaneira indivíduos em contexto de vulnerabilidade social e hipossuficiência financeira. Por outro lado, sabe-se que os direitos fundamentais devem ser verificados sobre uma dúplice ótica – limite e tarefa – pelo Estado. É limite porque o Estado não poder agir em desconformidade com eles, e é tarefa por ter a obrigação de agir para efetiva-los.

      Este trabalho utilizou os megaeventos recentemente ocorridos no Brasil – Copa do Mundo de 2014 e Olímpiadas de 2016 – como objeto de análise efetiva sobre como o Estado se comportou no tocante ao direito à moradia. As violações aos direitos humanos fundamentais dos indivíduos contrastam com o propagado pela mídia e pelo próprio Estado de que os eventos seriam uma grande oportunidade para o país e que deixariam um grande legado.

Se constatou nos Megaeventos a ocorrência de diversas violações a direitos humanos em diversas áreas, mas foi em relação ao direito à moradia que repousou nossa atual preocupação acadêmica, sendo analisados, em contraponto, os papéis do Estado, ora como promotor, ora como violador de direitos fundamentais.

O Brasil, além de previsão em sua Constituição Federal, também é signatário do PIDESC e, juntamente com o Comentário Nº 4 da ONU, traz referências sobre o que seria uma moradia digna e adequada. O conceito de moradia digna e adequada vai além de um lugar com “parede e teto”, contemplando fatores mais amplos, que devem ser avaliados pelo intérprete e, principalmente, pelo Estado quando da elaboração de políticas públicas habitacionais.

Para que uma moradia seja realmente considerada digna e adequada, é preciso aproximar os destinatários das políticas habitacionais de seu processo de escolha e elaboração, o que proporciona maior aproximação entre Estado e a realidade social. Os processos que podem vir a auxiliar na alteração do panorama deficitário apresentado, incluindo os indivíduos são: fortalecimento da cidadania e da democracia participativa, orçamentos participativos e mapeamentos participativos, todos em conjunto com o empoderamento dos indivíduos e emancipação social.

 

REFERÊNCIAS

ALFOSIN, Jacques Távora. Das legalidades injustas às ilegalidades justas: Estudos sobre direitos humanos, sua defesa por assessoria jurídica popular em favor de vítimas do descumprimento da função social da propriedade. Porto Alegre: Armazém Digita, 2013.

ARTICULAÇÃO Nacional dos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas. Dossiê de Megaeventos e violações de Direitos Humanos no Brasil. Versões 2012, 2013, 2014 e 2015 disponível em

https://comitepopulario.files.wordpress.com/2014/06/dossiecomiterio2014_web.pdf /  http://www.childrenwin.org/wp-content/uploads/2015/12/Dossie-Comit%C3%AA-Rio2015_low.pdf

AVRITZER, Leonardo; SANTOS, Boaventura de Souza. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, Boaventura (org) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

COMPARATO. Fábio Konder. Direitos e Deveres Fundamentais em matéria de propriedade. In: AMARAL JÚNIOR, Alberto; PERRONE-MOISÉS, Cláudia (orgs.), O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, São Paulo: EDUSP, 1999.

FRASER, Nancy. Redistribuição, reconhecimento e participação: por uma concepção integrada da justiça. In: D. IKAWA; F. PIOVESAN; D. SARMENTO (coord.), Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Júris,  2008. p. 172-191.

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FERREIRA. João Sette Whitaker. Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratização das cidades no Brasil e os riscos de um “urbanismo às avessas”. In. Hegemonia às avessas. OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (orgs). São Paulo: Boitempo, 2010.

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LAGO, Luciana Corrêa.  O direito à moradia nos limites da lei. In: PIQUET, Rosélia;

RIBEIRO, Ana Clara Torres (orgs). Brasil território da desigualdade: descaminhos da modernização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1991.

MONTEIRO, Vitor de Andrade. A importância do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, sociais e culturais na concretização do direito social à moradia adequada. In LINS JÚNIOR, George Sarmento (org). Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

SARLET, Ingo Wolfgang As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível.  Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional.  Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

______. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed.  Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

SYDENSTRICKER NETO, John.  Mapeamentos participativos: pressupostos, valores, instrumentos e perspectivas. 2008. Revistas brasileira de Estudos urbanos e regionais. Disponível em http://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/201 acesso em 15 de setembro de 2017.

[1] Advogada e professora de Direito. Mestra em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Pesquisadora. E-mail: [email protected]

[2] Professor titular de Direito do CESMAC. Doutorando pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: [email protected]

[3] Art. 11.1 Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível adequado para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.

[4] O caráter de fundamentalidade encontra-se, como mencionou Sarlet (2012, p. 74), com base em J. J. Canotilho e Robert Alexy, ligado ao direito constitucional positivo e resulta dos seguintes aspectos: a) é parte integrante da Constituição escrita, estando assim no ápice do ordenamento jurídico, possuindo natureza de supralegalidade; b) encontra-se submetido a limites formais e materiais (cláusulas pétreas); c) trata-se de normas diretamente aplicáveis e que vinculam de forma imediata o poder público e os particulares.

[5] Na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado (considerando um elemento fixo e imutável da dignidade). Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade, sendo, portanto dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (este seria o elemento mutável da dignidade) (Sarlet, 2012, p. 102).

[6] O estudo completo pode ser visualizado no endereço – http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/informativos-cei-eventuais/634-deficit-habitacional-06-09-2016/file

[7] Fonte: Dados básicos: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) – 2013. Elaboração: Fundação João Pinheiro (FJP), Centro de Estatística e Informações (CEI).

[8] http://www.planejamento.gov.br/servicos/faq/orcamento-da-uniao/elaboracao-e-execucao-do-orcamento/o-que-e-orcamento-participativo Acesso em 14 de setembro de 2017.