20 de abril de 2024Informação, independência e credibilidade
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A vítima e o vilão: Quem é quem no embate entre a Arrogância e a Dignidade

Reprodução / Desembargador rasgando a multa

Assisti diversas vezes o vídeo com a abordagem da dupla de guardas municipais da cidade de Santos (SP), a um senhor posteriormente identificado como Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), pelo descumprimento do decreto que obriga o uso de máscara em ambiente público.

Nenhum prazer eu sinto em assistir a cenas de embates morais, em que a razão (ou a falta dela) dá lugar a ofensas, humilhações, situações em que seres humanos, pela função que ocupam, se julgam inatingíveis; superiores à própria espécie e aos regramentos sociais. Mas confesso que me regozijo de um certo prazer quando a Arrogância é desmascarada no confronto com a Dignidade (assim mesmo, ambas com letras maiúsculas, pelo protagonismo que ocupam nessa ocorrência.

A conduta destemida e tranquilamente determinada com que o agente público Cícero Hilário Roza e seu colega, Roberto Guilhermino (responsável pela filmagem da ação) enfrentaram a situação gerada pelo desembargador, merece que esse vídeo seja repetido à exaustão, para mostrar a diferença gritante entre a Arrogância e a Dignidade.

Um poderoso homem da Justiça, contra um simples funcionário público, taxado, preconceituosamente, de analfabeto por “sua excelência” (assim mesmo, com letra minúscula). Uma dupla de guardas municipais que ali, naquele momento, só tentavam fazer o homem da lei cumprir os regramentos de convívio social, os atos normativos de decretos governamentais, determinantes no combate à pandemia do coronavírus.

“Decreto não é lei”, mas é legal, em todos os sentidos, ter responsabilidade com o bem estar coletivo; ter respeito às pessoas; seguir regras. Ninguém tem o direito de colocar a vida dos outros em risco; de ofender, humilhar quem quer que seja, ainda menos alguém que a ele se dirigiu educadamente.

– O senhor pode, por favor, colocar a máscara?  Seria tão simples ao desembargador colocar o equipamento de proteção. E se não o tivesse, seria tão melhor reconhecer a falha e tão mais honroso pagar pelo seu erro, aceitando a multa de R$ 100, ou até recorrer, na forma da lei que ele conhece tão bem. Mas sentindo-se um ‘deus embargador” ele preferiu desmascarar também sua personalidade: ofender, ameaçar, dar carteirada, humilhar, destratar, desacatar um servidor público no exercício de sua função.

Admirável a serenidade desse guarda municipal, que é pós-graduado em direito educacional, mas que não alterou a voz nem quando foi chamado de analfabeto, não se deixou intimidar e não arredou pé do cumprimento de seu dever. Em poucos minutos ele ensinou ao homem da lei, a lição que nem todos os anos de estudo lhe garantiram aprender: sobre como cumprir seu dever sem ofender ninguém.

Quanta dignidade e equilíbrio no gesto de Cícero Hilário, mesmo quando ouviu do desembargador que jogaria a multa na sua cara e não retrocedeu, mesmo diante da carteirada do homem da lei ligando para autoridade pra se safar da multa; e mesmo quando “sua excelência” de fato amassou a notificação e jogou aos seus pés e acabou sendo multado também por jogar lixo no chão.

A lista ainda não está completa. Falta imputar ao desembargador o rigor do artigo 331º, do Código Penal, que considera crime: “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”. Pena: Detenção, de 6 meses a 2 anos, ou multa. Mas isso, certamente a Justiça o fará – se houver justiça. Se avançar a conduta do Conselho Nacional de Justiça, ora presidido pelo ministro corregedor Humberto Martins, que evocou para si também o procedimento aberto pelo TJ-SP. Aliás, o Tribunal onde Siqueira trabalha chegou a declarar, em relação ao caso, que não compactua com atitudes de desrespeito às leis, regramentos administrativos ou de ofensas às pessoas.

Ah, o desembargador desmascarado alega que o vídeo da abordagem foi descontextualizado para transformá-lo, “de vítima a vilão”. Vítima, na verdade, é a sociedade brasileira submetida a esse tipo de postura por parte de algumas de suas autoridades. Precisamos de menos arrogância e muito mais dessa dignidade inspiradora demonstrada pelo guarda municipal.

Resta o papel de vilão. E para ele, nessa história, só existe uma carapuça.